O que está por trás da coalizão anti-terrorismo da Arábia Saudita
- Plínio Zuni

- 19 de dez. de 2015
- 4 min de leitura
Atualizado: 2 de jun. de 2020

Em mais uma manobra de relações públicas, a Arábia Saudita anunciou para o mundo, no dia 15 de dezembro, a formação de uma nova Liga Muçulmana de Combate ao Terrorismo, que incluiria 34 países da Ásia, África e Oriente Médio. No dia seguinte, dois dos principais países do grupo, Indonésia e Líbano, anunciaram que não faziam ideia de que participavam de tal aliança.
O Ministro de Relações Exteriores do Paquistão, Aizaz Chaudhry, alegou só ter ficado sabendo da participação de seu país nesta liga internacional através dos noticiários. O Paquistão, ainda que tenha sido sempre um aliado do reino Saudita, recusou participar da coalizão, reafirmando a posição que assumiu ao se recusar a participar dos ataques ao Iêmen liderados pela Arábia Saudita neste ano.
O Líbano, por outro lado, recebeu bem a notícia da aliança surpresa. O primeiro ministro libanês, Tammam Salam, confirmou, através de um comunicado oficial, jamais ter recebido qualquer memorando ou telefonema da Arábia Saudita a respeito do assunto, porém declarou que “o Líbano é a linha de frente do combate ao terrorismo”.
A Indonésia ainda não decidiu se permanece na liga, e o governo da Malásia não se retirou da coalizão, mas se posicionou mais como um apoiador moral do que propenso a ações diretas, e disse que “não há nenhum compromisso militar, e sim algo como um entendimento de que estamos todos unidos no combate à militância.”
O véu que cobre a coroa
“É hora de o mundo islâmico tomar uma posição, e ele fez isso através da criação de uma aliança para conter e combater os terroristas e aqueles que promovem suas ideologias violentas”, declarou, com muita ironia e nenhuma autocrítica, o Ministro de Relações Exteriores saudita, Adel al-Jubeir, em Paris.
A Arábia Saudita vem recebendo críticas de todos os lados. Organizações de observadores internacionais, jornalistas e militantes denunciam as inúmeras violações aos direitos humanos praticadas pela monarquia. Hoje já são amplamente conhecidas as ligações históricas, políticas, econômicas e ideológicas entre o regime saudita e grupos como a Al Qaeda e o ISIS. Além disso, políticos dos EUA e Europa alegam que o reino estaria fazendo muito pouco na luta contra o terrorismo na região. Recentemente a hashtag #SueMeSaud (#MeProcesseArabiaSaudita) viralizou no Twitter, após o governo anunciar que iria processar um usuário da rede social por comparar o país com o ISIS. Por último, há os resultados desastrosos da guerra contra o Iêmen circulando pelos noticiários e redes sociais. A opinião pública não tem sido a mais favorável em relação ao reino, e isso é ruim para os negócios.
Por isso, o país vem tentando distanciar sua imagem dos grupos fundamentalistas que promovem terrorismo não-estatal. Diversos analistas apontaram o uso político das ultimas eleições municipais, nas quais mulheres puderam participar politicamente pela primeira vez, como uma forma de mascarar a absoluta falta dos direitos das mulheres no país. Em setembro a Arábia Saudita assumiu a liderança do Conselho de Direitos Humanos da ONU. A criação desta nova liga antiterrorismo, absolutamente sem planejamento ou metas objetivas, serve também como cortina de fumaça para os mandos e desmandos sauditas.
Batendo o pé dentro de casa
Curiosamente, na lista não consta nenhum país de governo xiita, como o Iran, a Siria ou o Iraque, o que poderia indicar que o plano da Arábia Saudita tenha mais a ver com a oposição ao Irã, seu rival direto, e com as investidas do governo saudita contra as milícias Houthi no Iêmen, do que apenas com o combate ao terrorismo.
O maior rival local da monarquia saudita é o Irã, e não é incomum a troca pública de ofensas e acusações entre os dois países. Essa coalizão parece ser um recado político contra Teerã e contra o avanço dos governos xiitas na disputadíssima liderança geopolítica do Oriente Médio, o que é um interesse direto dos EUA. De fato, a ideia para a coalizão teria sido resultado de uma visita do senador John McCain ao país.
Mais perigoso que isso, porém, é a legitimidade que essa coalizão daria à visão saudita do que é um grupo terrorista. O Príncipe Mohammad Bin Salman, ministro da defesa saudita, declarou que o objetivo é atacar “todos os grupos terroristas no mundo islâmico”, um conceito bastante flexível de acordo com os interesses de quem manda. Não se pode perder de vista que a Arábia Saudita aprovou, em abril de 2014, uma nova lei de segurança nacional que classifica ateus como terroristas. Além disso, nunca é demais relembrar que o país lançou, neste ano, a operação Tempestade Decisiva, que já matou mais de seis mil pessoas, sendo a maioria civis, e deflagrou uma crise humanitária que tem sido muito bem explorada pela Al-Qaeda do Iêmen. Essa coalizão pode dar mais tranquilidade para que a monarquia continue seus massacres contra o povo xiita Houthi, intervenção militar que tem sido referida como o “Vietnã saudita”. E é claro que o trabalho de limpeza étnica no Iêmen seria muito mais fácil se o mundo concordasse em enxergar os os milhares de civis assassinados como terroristas abatidos. O poder de definir quem é um terrorista e quem é um defensor da paz é um ponto vital para a manutenção do poder, seja lá, seja aqui, seja em qualquer lugar.
Em qualquer cenário e leitura possível, uma coisa é certa: todas essas movimentações políticas da monarquia saudita são muito mais sobre influência e legitimidade política do que sobre terrorismo, direitos humanos, solidariedade ou uma preocupação verdadeira com os muçulmanos mundo afora. O triunfo da Arábia Saudita como o Estado de vanguarda do mundo árabe é vital para os interesses das potências não-árabes que lucram mais com o sangue árabe do que com o petróleo.
Se a ideia era “conter e combater os terroristas e aqueles que promovem suas ideologias violentas”, o primeiro passo seria conter as ideologias e ações violentas promovidas pela Arábia Saudita e seus aliados no terroristas estatal.




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